terça-feira, 15 de novembro de 2016

Os desenhos, pesadelos e a realidade de uma vítima de estupro na infância

A. fez os desenhos nos períodos em que estava sendo estuprada pelo vizinho. (Imagem cedida pela vítima)



A. tem 29 anos e há mais de duas décadas fez desenhos sobre o vizinho. Ela guarda esses rabiscos a sete chaves, em uma sacola que fica escondida embaixo da cama, e nunca mostrou nenhum deles para alguém. Nem para os amigos, nem para a família: ninguém nunca os viu. Com 10 anos de idade, desenhar foi a forma que A. encontrou para "desabafar" sobre os estupros que sofria e ela guarda esses papéis, com cuidado, até hoje.

Quando se deita para dormir, até hoje mulher tem pesadelos com o estuprador. Praticamente todas noites ela tem pesadelos. A seguinte cena invade seus sonhos:


A. está dormindo e acorda com um homem passando as mãos pelo corpo dela. Ele sussurra em seu ouvido e diz que ela é uma pessoa "boa" e "linda". Depois, pede para que ela se levante. Quando ela se levanta, esse homem está pelado. Ele a abraça e começa a beijá-la... Ele faz com que ela, criança, toque no corpo nu dele e depois também toca o corpo dela. 

A seguir, esse homem se senta, coloca ela em seu colo e a estupra. Ele continua sentado, enquanto ela está de pé. Esse cara diz para A. colocar os dedos em sua vagina porque, se ela não fizer isso, ele vai colocar o "brinquedo do tio" (o pênis) dentro dela. Ela atende aos pedidos do homem porque sabe que ele está falando sério e porque sabe o quanto dói quando ele faz isso.

A. também não quer que ele enfie os dedos dele, de novo, em sua vagina. Dói quando ele faz isso e, então, sem opções, ela começa a se masturbar na frente dele até gozar, atendendo ao pedido. Quando o homem nota que ela gozou, ele diz que ela é uma "menina danada" e que suas mãos são mais sujas do que as dele.


A mulher de quase 30 anos acorda em estado de pânico. Não consegue distinguir entre o que é sonho e o que é realidade. Sente medo, desespero e nojo. O homem que sussurava em seu ouvido, no pesadelo, é o cara que ainda mora ao lado da casa dela. Um senhor de setenta e poucos anos que a estuprou pela primeira vez quando A. tinha 10 anos de idade.

Na infância, A. era uma criança carente e sem a atenção dos responsáveis. Por isso, quando o vizinho cinquentão a convidava para ir até a casa dele, ela aceitava. Aquele senhor, "bondoso" e "católico", que nunca faltou na missa de domingo, dizia coisas gentis a ela. A elogiava e dava presentes. Às vezes, dava dinheiro. Com isso, a garota tinha certeza de que estava, finalmente, sendo amada por alguém e continuava frequentando a casa dele.

No entanto, toda vez que A. ia até a residência do vizinho, os estupros se repetiam. O homem quatro décadas mais velho do que ela a beijava. Fazia com que ela passasse as mãos pelo corpo dele. Explorava o corpo dela. Obrigava a garota a colocar a boca em seu pênis. A colocava em seu colo enquanto estava nu e, depois que tinha feito o que queria, procurava uma maneira de comprar o silêncio da criança. 

O agressor sabia que ela não gostava do que ele fazia. Sabia que ela sentia dor quando ele a invadia com seus dedos. Mas sabia, principalmente, como manipular a garota e fazer com que ela não contasse sobre o que acontecia naquela casa. Com 11 anos, A. tinha medo de todos os homens e achava que todos se comportavam da mesma forma que o vizinho. Não sabia o que significava a palavra estupro.



O primeiro desenho que A. fez, em 1998, ano em que o agressor a estuprou pela primeira vez. (Imagem cedida pela vítima)

Desenhos

Com 11 anos de idade, em 1998, A. era violentada frequentemente pelo vizinho. Ela já tinha ódio de si mesma e uma vontade intensa de morrer. A menina odiava aquele homem e a única forma de dizer isso era através dos rabiscos que fazia no papel, pois tinha certeza que se contasse para alguém da família as coisas seriam, ainda, piores.

A garota não podia abrir a boca porque o seu agressor era um homem querido pela vizinhança, pelo pessoal da igreja e pelos membros da própria família. Ele frequentava a casa de A. e, além disso, dizia a criança que ela era a culpada pelo que ele fazia. Por isso, ela decidiu ficar em silêncio e acreditou que merecia tudo o que o estuprador fazia. 

Assim, desenhar foi a única forma que a garota encontrou para contar o que estava acontecendo, embora ninguém nunca tenha prestado atenção em seus rabiscos.


Pesadelos

Desde a infância A. tem pesadelos com o agressor quase todas as noites. Ela vive com medo e aterrorizada, pois ele ainda mora por perto e ela o vê com frequência. Quando isso acontece, o homem ainda a intimida com o olhar malicioso, enquanto a mulher fica enrijecida e sem esboçar qualquer reação - da mesma forma como se comportava quando era criança e estava sendo violentada.

Todos os dias A. se lembra das coisas que aconteceram com ela dos 10 aos 14 anos e sente um misto de tristeza e nojo do próprio corpo. Ensinaram ela a ter ódio de si mesma. Quase vinte anos se passaram e a mulher se comporta como a mesma criança, frágil, assustada de 1998. Às vezes, fica um tempão nua em frente ao espelho buscando por respostas para a pergunta "Por que tinha que ser comigo [os estupros]?"

Não suporta e, por isso, não fala a palavra estupro.

Os pesadelos de A. são, na verdade, as lembranças de um passado que não tem como esquecer.



"Ele", "eu" e "amor": as palavras escritas entre os desenhos que A. fazia sobre o vizinho. (Imagem cedida pela vítima)


Realidade

Os pesadelos noturnos aterrorizam A. até hoje - além da síndrome do pânico, do isolamento social, do Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC) com as mãos, da fobia social, as dificuldades no trabalho (ela é secretária) e a incapacidade de se relacionar com outras pessoas ou simplesmente ter amigos.

Porém, nenhum desses transtornos entristece mais A. do que as lembranças de sua infância:

- A mulher chora desesperada e sente um nojo enorme de si mesma quando lembra que, com 12 anos de idade, abusou sexualmente do próprio primo, que tinha 2 anos. Ela não entende, não aceita e não tem a menor ideia do porquê fez isso. Só se lembra que viu o bebê, sentiu desejo e ódio, e repetiu o que o vizinho fazia com ela. A. colocou a boca no órgão genital do primo e fez com que ele tocasse o corpo dela. Fez isso durante 3 meses e não vai se perdoar nunca por tal comportamento. Ainda sente o desejo enorme de morrer. Não sabe sua função no mundo.

- Quando completou 13 anos de idade, A. continuava sendo violentada sexualmente pelo homem mais velho e ganhou um "presente de aniversário" dele: a penetração. Antes, o agressor a estuprava com os dedos e a boca, além de obrigá-la a se masturbar na sua frente. Mas, ele esperou o dia do aniversário da garota para colocar, a força, o pênis dentro da vagina dela. Por isso, ela odeia a data.

- Meses depois de completar 13, o vizinho não a procurou mais. O corpo de A. estava mudando e ela já não era mais uma criança. Porém, a menina ainda acreditava nas coisas que o homem dizia. Ela ainda acreditava que pelo menos ele era alguém que oferecia "amor" e "carinho", que são coisas que ela jamais teria em casa. Por isso, sentiu-se rejeitada pelo próprio agressor quando ele não se interessou mais por seu corpo. A. achava que aquilo que o agressor dava a ela era amor. Era essa a noção de amor que ela tinha.

- Com 14 anos, quando já não era mais o alvo do vizinho, a adolescente foi estuprada por outro agressor. Ela estava voltando sozinha da igreja quando um funcionário do pai dela a abordou, de caminhão, e ordenou que ela entrasse. O homem levou A. até um terreno baldio e a violentou sexualmente enquanto ela estava jogada no chão de pedra e areia. O estuprador duvidou do Deus da menina católica, zombou da fé dela e, com uma faca, fez um corte em formato de cruz na pele da vítima. Até hoje A. carrega a cruz tatuada na virilha.


Assim como 90% das vítimas de estupro no Brasil, A. nunca denunciou o crime. Nunca contou com o apoio da família ou fez terapia psicológica para trabalhar seus traumas. Nunca teve amigos, namorados ou alguém em quem pudesse confiar. Não conseguiu cursar a universidade porque tem dificuldades em se relacionar com outras pessoas. Nunca fez sexo com consentimento porque tem medo de 100% dos homens. Não come os alimentos que prepara porque tem nojo das mãos. Mas alguma fé em alguma coisa fez com que ela abrisse a sua história. 

A. só topou contar sobre a sua infância para este blog porque acredita que, quebrando o silêncio, pode contribuir para que outras crianças não sejam vítimas de estupro.
















quinta-feira, 11 de agosto de 2016

Meu padrasto me levou ao motel. Eu tinha 12 anos

                                                                           Créditos: everystockphoto.com / Photographer: Lin Pernille



Por L. R., 28 anos

Quando resolvi falar sobre a minha história nesse blog, pensei que seria mais fácil e que sairia de forma natural. E hoje, aqui, sentada no trabalho em frente ao computador, percebo que não é nada fácil contar algo que mudou minha vida completamente.

Tudo começou em 2000 quando minha mãe se casou novamente. Ainda tenho viva a memória de quando ela e meu padrasto retornaram do cartório. Senti uma alegria imensa, pois meus pais se separaram quando eu ainda era um bebê e este padrasto se tornou minha referência como pai.

Menos de 1 ano após esta data tão especial, os abusos começaram.

Não me recordo de números, meses, dias exatos. Eu era uma criança de 12 anos que como em várias famílias era levada pelo homem da casa para o colégio. 

Meu amor de filha por ele não tinha espaço para desconfianças. Até que um dia paramos em frente à escola e o primeiro aliciamento foi feito, como um convite tentador para qualquer criança: faltar à aula para me levar a um lugar agradável, onde ele sempre levava a minha mãe, onde eu iria me sentir muito à vontade, pois lá tinha chocolate, refrigerante, piscina, sauna...

Me lembro de só sentir medo quando ele disse para não contar à minha mãe, mas, mesmo com medo, eu fui.

Chegamos ao lugar "agradável". Quando paramos na entrada do motel, ele me pediu para deitar em seu colo para que ninguém visse que havia uma menor no carro. Pediu a suíte "Pantera", a mais completa e com as garras mais afiadas.

No quarto, ele pediu que eu tirasse a roupa para entrarmos na sauna. Eu não quis, mas ele novamente falou que a minha mãe sempre entrava nua na sauna e que o normal era entrar sem roupa.

Me lembro de sentar ao lado dele, que estava completamente nu. Eu estava gelada na prisão daquele cubículo quente e, logo, ele começou a me tocar, a beijar meus seios e me masturbar.

Tentou me beijar várias vezes, mas eu me esquivava por achar nojento. 

Em seguida, fomos para a banheira. Não houve penetração, mas eu gozei e imediatamente me senti culpada por sentir, e descobrir, o prazer.

Ficamos mais de uma hora no motel e, logo depois, ele me deixou na escola, ainda a tempo de pegar o segundo horário.

Entrei na sala, sentei e me sentia suja.

A cultural culpabilização da vítima e a vergonha já se manifestavam em alguma consciência despertada naquele momento e me tomava o medo de minha mãe nunca me perdoar.

Senti uma necessidade enorme de contar a alguém, mas quem?

Guardei esse segredo por anos, sendo abusada toda semana na cama em que ele se deitava com a minha mãe.


sábado, 30 de julho de 2016

A carta de um estuprador*

                                 Imagem: Free Stock Photos- Dreamstime.com

*O título poderia ser "A carta de um pedófilo", mas acontece que a pedofilia é uma doença e o estupro de vulnerável um crime hediondo. E aqui falamos da carta de um criminoso.



A vítima é Tereza**, uma bonita jovem negra de 22 anos, que mora no Rio de Janeiro, formou-se há pouquíssimo tempo em psicologia e gosta de curtir a vida como a maioria das garotas da sua idade. O agressor é um homem que foi o seu padrasto durante a infância.

Ela tinha 4 ou 5 anos - não consegue se lembrar com exatidão - quando a mãe foi morar com esse homem e a levou, junto com o seu irmão mais novo, para morar com o casal. Tereza lembra que o casal sempre teve uma relação "muito conturbada". 

O padrasto bebia muito e sua mãe era vítima de violência doméstica. Como esses episódios violentos aconteciam com bastante frequência, Tereza se lembra bem de diversas coisas que aconteceram há mais de uma década.

Certa vez o padrasto sacou uma arma e atirou contra a sua mãe e só não acertou porque a mulher conseguiu se abaixar. Quando isso aconteceu, Tereza tinha 6 anos e se lembra que a mãe pediu para que ela e o irmão não contassem nada a ninguém. As duas crianças sempre estavam presentes nesses episódios de violência.

Amedrontados por ver a mãe sendo agredida pelo padrasto, os irmãos tinham medo que o agressor machucasse ainda mais a mulher e que também os machucasse, caso contassem sobre o que acontecia em casa. Atenderam ao pedido da mãe.

Tereza tinha os mesmos 6 anos quando esse padrasto começou a estuprá-la. Na maioria das vezes, ele estava bêbado, passava as mãos pelo corpo e pelas partes íntimas dela e a obrigava a fazer sexo oral nele.  Por duas vezes houve penetração anal e a primeira vez que isso aconteceu Tereza tinha 8 anos de idade. 

"Lembro que gritei e comecei a chorar... ele tampou a minha boca para que eu ficasse quieta. Ele não conversava comigo durante a cena e nem após. Nunca me pediu para que eu não contasse nada pra ninguém".

Na época, ela não tinha noção do que o padrasto estava fazendo, mas ficava com medo de contar para a mãe e o casal brigar ainda mais. Tereza tinha medo de falar porque achava que o agressor poderia matar a mãe, o irmão ou ela.

"Por isso acho que de alguma forma eu permitia que isso acontecesse, para que não houvesse mais brigas...", diz.


A carta

Certa vez, o padrasto de Tereza escreveu uma carta para ela. 

Naquele papel, o estuprador contava para a menina sobre o desejo que ele tinha de penetrar a sua "linda b*cetinha" [sic] e que ele só não poderia fazer isso por um motivo, que Tereza não se lembra qual era.

Na mesma carta, o estuprador ainda dizia que a criança "também desejava aquilo".

Quando Tereza começou a menstruar e a ter pêlos pubianos, com 12 anos, os estupros se tornaram cada vez mais raros. Pouco tempo depois, o padrasto e a mãe se separaram.

A mãe nunca soube das agressões e dos estupros cometidos pelo marido. Ela trabalhava muito durante o dia e estudava no período da noite. Seu tempo em casa era curto.


Nas mãos de outro agressor

Depois de se separar do homem que violentava a sua filha, a mãe de Tereza teve um novo relacionamento e foi morar com essa pessoa. A adolescente, que estava com 13 anos, não aceitou morar com o casal, pois tinha medo, e foi morar com a avó.

Na nova casa, o marido da avó aproveitava para acordar Tereza, todos os dias pela manhã, passando as mãos pelo seu corpo. 

Esse homem chegou a dizer para a adolescente que já tinha feito a mesma coisa com a filha de uma namorada, pois essa menina estava "provocando" ele. Para complementar, disse à Tereza que essa menina poderia até contar tudo para a mãe dela, "mas que a culpada era ela".

Com 14 anos, Tereza saiu da casa da avó e foi morar com o pai, em outra cidade. 


Consequências psicológicas

Hoje, quase dez anos depois de sair da casa da avó, a vítima faz terapia para "trabalhar" os episódios traumáticos da infância.

Os estupros afetaram muito a relação de Tereza com outras pessoas e com a sua própria autoestima.

Ela foi uma adolescente insegura, que fazia de tudo para agradar e ainda hoje tem receio de se posicionar ou colocar a sua opinião em qualquer assunto. Ela acha que quando der a sua opinião pode provocar brigas e desentendimentos.

"Isso me atrapalha no trabalho, pois trabalho em uma instituição e minha função exige que eu me posicione em alguns momentos. Mas, esses são só alguns exemplos, que estão sendo trabalhados [em terapia] e mudados".

Ninguém da família sabe o que Tereza passou, "só alguns amigos mais íntimos".



**Tereza é um nome fictício para T. S., que prefere manter o anonimato.








domingo, 3 de julho de 2016

Como - e por que - Jéssica resolveu criar uma página sobre abuso sexual

Jéssica decidiu criar a página Abuso e Violência "NÃO" no início do ano, quando procurava ajuda.  Imagem:acervo pessoal



Se você já teve curiosidade ou precisou de um "socorro" e pesquisou por páginas sobre abuso e violência sexual no Facebook, é muito provável que tenha se deparado com a página Abuso e Violência "NÃO", que é a maior sobre o tema. Com mais de 49 mil seguidores, a página atualiza e informa pessoas que estão interessadas em ler notícias e ver informações sobre abuso sexual, além de receber centenas de relatos de estupro. No entanto, poucas pessoas conhecem a história de quem está por trás de todos esses posts.

Quem criou e administra a página é a estudante Jéssica Camila Rosa de Oliveira, de 19 anos. A paulista, que mora em Diadema, resolveu dar início ao projeto porque queria encontrar uma forma de lidar com a própria dor. 

Em entrevista ao #VamosFazerUmEscândalo, ela explica como teve a ideia e o que a motivou. 


Acompanhe:


Ágatha Santos: Queria que você contasse um pouco sobre quando e como resolveu criar a página... Como é essa experiência?

Jéssica: Foi assim, eu resolvi fazer a página no começo do ano. Foi quando eu tinha revelado para a minha família inteira sobre o que eu tinha passado, do abuso, e aí eu entrei numa depressão profunda porque eu criei uma expectativa de ter apoio da minha família e foi totalmente diferente. O único apoio que eu tive foi da minha prima. Eu saí de casa, tive várias desavenças com a minha mãe e aí eu fui morar com a minha prima. Eu tentei vários suicídios e nunca dava certo... Aí eu comecei a procurar ajuda, que foi quando eu comecei a fazer terapia e tive a ideia de ocupar a minha dor. Mas, eu pensava: "como vou ocupar a minha dor?". Então, eu comecei a procurar páginas... Na verdade, procurei pra ter ajuda, pra ver se eu encontrava alguma ajuda e aí eu achei um monte de páginas, mas nenhuma foi do jeito que eu queria. Então eu pensei "vou criar a página", mas não pensei que ia progredir tanto o quanto está agora. Acho que foi uma publicação que a gente fez das imagens das crianças, dos relatos das crianças e aquilo começou a crescer. Em menos de duas semanas, a página estourou. Eu fiz no intuito de ajudar outras pessoas, eu queria tapear a minha dor abraçando a dor de outras pessoas. Pra mim, isso é muito importante porque hoje, todas as vezes que eu entro na página, eu peço para que eu esteja com o coração aberto para abraçar a dor de outras pessoas. Eu percebo que muitas pessoas não têm ajuda alguma, nem da família, nem de terapia, nem nada.


A: E como que foi essa parte da sua vida que você teve que sair de casa, quando teve desavenças com a sua mãe ao contar sobre o abuso que sofreu etc.?

J: Então, é... foi difícil, sabe? Foi uma fase assim que, pra mim, eu fiquei sem chão... assim, eu não via mais sentido na vida porque eu resolvi contar pra minha mãe para que ela pudesse resolver pra mim, mas foi totalmente diferente, sabe? Eu... não sabia o que fazer porque ela é a minha mãe e eu tinha que contar pra ela e ela queria que ficasse só entre a gente. Só entre eu e ela... E eu não queria isso, então ela começou a desconfiar, ela queria que eu provasse, sabe, porque mesmo ela tendo se separado dele, ela ainda tinha contato com ele. Então, querendo ou não, ela gostava dele ainda. Então, quando ela ficou sabendo foi um choque pra ela e aí eu falei que eu ia contar para a minha família inteira, que eu não ia poupar ninguém porque ele ainda tinha contato com a minha família e eu ia ficar, sabe... muito mal se acontecesse mais alguma coisa e eu não ter contado pra ninguém. E aí a minha mãe não aceitou, ela não falou comigo, no outro dia quando eu contei... ela ficou me evitando e foi aí que eu decidi sair da casa dela e fui morar com a minha prima. Na verdade, a minha mãe queria me mandar embora, queria me mandar para outra cidade e eu não aceitei também. Eu não aceitei ficar em silência, permanecer em silêncio, porque eu acho que se eu ficasse em silêncio não ia adiantar nada. Aí eu resolvi morar com a minha prima e a minha mãe também não aceitou. Ela queria que eu ficasse sozinha e achou que a minha vida tinha que parar, que eu ia, sei lá, me envolver com drogas. Na cabeça dela foi isso, ela achou que eu ia me perder totalmente igual os outros casos que ela vê. Então, foi uma fase difícil. Mas, eu recebi muita ajuda das minhas amigas. Eu tenho duas, a Ju e a Elisa, que me ajudaram muito, muito, nessa fase da minha vida. Mesmo a gente distante, foi essencial pra mim porque eu comecei a me espelhar nelas. Então eu pensei, se eu recebo tanta ajuda, por que não posso ajudar outras pessoas também?


A: Pelo que entendi, o seu agressor foi o seu próprio padrasto, é isso? Qual é a sua história de abuso, Jéssica?

J: Sim, foi ele. Assim, quando eu era menorzinha, eu morava com a minha avó. Morei com a minha avó até os seis anos. Aí, quando eu completei sete anos, eu me lembro que fui morar com a minha mãe, eu vim morar com ela aqui em São Paulo, e ela já tinha se casado com ele. No começo, assim, pra mim, foi legal, sabe, tipo... eu pensei comigo, pô, vou ter um pai... e aí, com o tempo, as coisas começaram a mudar. A minha mãe trabalhava muito e então ela nunca teve tempo de poder me notar ou pensar em mim, sabe? E aí ele começou a ficar sozinho com a gente e começou a abusar de mim. E aí... sempre ocorria... bom... eu não me recordo quando foi a primeira vez, quando aconteceu, mas foram diversas vezes. Aí a minha mãe se separou dele e, mesmo assim, continuava acontecendo. Porque assim, pelo fato de a minha mãe gostar dele, minha mãe vê ele como nosso pai, então a gente tinha contato com ele. E a minha mãe entrou em outro relacionamento... mas, ainda continuava tendo contato com ele, gostava dele, saía com ele. Então, ele sempre teve contato com a minha vida e eu nunca pude falar nada porque a minha mãe... ela pensa "a Jéssica faz o que quer, na hora que quer", então o que eu não podia era desrespeitar ele. Pra minha mãe, sabe, eu não poderia desrespeitar o cara que me criou. E eu pensava, o que que eu vou explicar pra ela? Por que que eu não gosto dele? Por que eu não gosto de estar do lado dele, sabe? E ele sempre me ameaçava... Ele falava assim "ah, se você contar, eu vou fazer a sua mãe não acreditar, eu fazer todo mundo não acreditar, eu vou falar que você queria". Então, foi por isso... assim... que esse é um dos motivos que eu nunca contei pra minha mãe. Ou seja, o abuso começou dos meus sete e foi até os meus quinze anos, que foi quando a minha mãe se separou dele. Mas, assim... até os meus quinze anos era frequente, era todo final de semana que eu ficava sozinha, ele abusava de mim. E aí quando a minha mãe se separou dele, a gente foi morar em outra cidade e, então, era raro. Mas, chegava nas férias e eu tinha que ficar com ele e era quando acontecia e aí foi diminuindo aos poucos. Então, chegou um tempo que eu não tive mais contato com ele ou ter que fazer alguma coisa com ele... no ano novo, do ano passado, foi a última vez. Eu fui pra casa... a gente tava em família e ele chegou... assim... porque ele tinha contato, mesmo com a minha mãe sendo casada, ele tinha contato com a gente. Ele chegou lá e foi quando ele tentou abusar de mim e aí eu decidi... não aconteceu nada, mas eu decidi que eu não poderia aguentar mais e não contei pra ninguém na hora. Eu fui conseguir contar quando eu conversei muito com a minha amiga. Conversei com ela e foi quando eu decidi contar pra minha família inteira o que estava acontecendo. E ele negou tudo. Assim... na verdade, ele não falou nada, sabe? Ele ficou mais na dele e fugiu... sumiu... e nem falou nem que sim e nem que não. Então, pra minha mãe, surgiu aquela dúvida: será que isso aconteceu? Tipo... você tinha contato com ele, você conversava com ele, como isso poderia ter acontecido, entendeu? Então, isso, pra ela foi... tipo... uma dúvida enorme. E foi aí que a gente entrou numa discussão, de uma não falar com a outra e, até então.. até hoje... minha mãe não sabe de detalhes porque foi, assim, uma coisa que eu decidi que eu não queria contar mais pra ela. Porque ela não soube lidar com essa história quando eu contei inicialmente, então ela não ia saber lidar com os detalhes, sabe? Então, eu preferi ficar na minha.


A: Entendi. E até hoje você tem essa relação distante com a sua mãe? Como é?

J: Não. Hoje a gente não tem um relacionamento muito amigável, mas, a gente... eu decidi que ela vai ter que me aceitar. Eu falei pra ela que ela vai ter que me aceitar, que o jeito que eu sou, o que eu sou hoje e, do mesmo jeito que eu aceito ela como a minha mãe, ela tem que me aceitar! Porque eu vou gritar, sim. Eu vou falar e eu vou ajudar várias outras pessoas e eu vou ajudar quem eu puder e ela vai ter que aceitar isso. Ela vai ter que aceitar eu falar de uma coisa que eu vivi. Então, ela tá.. assim.. aprendendo.. sabe? Ela me afronta muito com algumas palavras... é... assim... uma palavra que ela falou pra mim e que eu nunca, nunca, vou esquecer foi... a gente, numa discussão nossa, ela falou pra mim "é mais fácil ele te dar um presente e você sorrir, do que eu vir e conversar com você". Então... foi uma frase... assim... que... eu estar na frente da minha mãe é muito difícil. Ela me vê como uma rival dela, como a amante do amante dela... né... no caso... porque ela já estava em outro relacionamento... mas, ela me via dessa forma. Hoje, a gente tem um convívio assim... né... não muito amigável, mas converso com ela, normal, e é isso...


A: Quando você diz que contou sobre os abusos para todos da sua família... ninguém pensou em denunciar ou fazer alguma coisa a respeito... nada?

J: Eles até pensaram, mas, como a minha mãe começou a dizer que eu não tinha provas, que eu precisava ter alguma prova para poder mostrar que foi verdade, eu desisti. Não quis ir atrás porque seria a minha palavra contra a dele! Vi que minha vida iria mudar, nessa época eu já estava com a página e comecei a ver um monte de relatos em que as pessoas foram atrás da justiça e, que mesmo com provas, não fizeram nada em relação. Era sempre mais uma queixa aberta que seria esquecida ali. Então, quando vi que não tinha como provar, desisti e não quis levar a diante. Mas esse foi o pior erro que eu fiz. Pelo fato de eu não querer fazer denúncia, minha mãe começou a pensar que eu estava defendendo ele.


A: Não tinha muito o que fazer...

J: Não.


A: Voltando a falar sobre a página, Jéssica, quanto tempo você dedica à ela?

J: Assim, no início eu passava a maior parte do meu tempo lá, tentando responder todas as pessoas que falavam comigo. Tem outras duas administradoras, também, além de mim. Mas, comecei a não me sentir bem ficando ali 24 horas, daí comecei a dividir o meu tempo. Hoje, entro todos os dias na página e fico por lá umas 2, 3 horas respondendo as pessoas.


A: Já são quase 50 mil pessoas que curtiram a página. Você acha que a maioria do público são as próprias vítimas de abuso sexual?

J: Sim, acredito que sim! Pode até não ter sido abusado sexualmente, mas, de alguma outra forma foi ou conhece alguém próximo que foi.


A: Você tem ideia de quantas pessoas pedem ajuda por semana na página?

J: Assim, noção de quantas pessoas eu não tenho porque, como a Fernanda [a outra administradora] também responde as pessoas, eu não faço ideia. Até porque são muitas mensagens, entendeu? Então, a gente vai respondendo... Eu nunca contei quantas pessoas, mas é bastante. Todos os dias tem mensagem.

quinta-feira, 23 de junho de 2016

Lágrimas que não secam. E vão virar livro

Dina Soares, 45, vive atualmente em Guimarães, uma cidade portuguesa no Distrito de Braga.  (Foto: acervo pessoal)



Hoje com 45 anos de idade, Dina Soares divide o seu tempo entre trabalhar no salão, onde atua como cabeleireira e esteticista, cuidar do filho, conversar com vítimas de estupro e escrever a sua própria história, no livro que vai receber o título "Lágrimas no Silêncio".

Nesse livro, Dina fala sobre o que passou nas mãos do pai, dos 8 aos 14 anos de idade.

Mais de três décadas se passaram e ela, simplesmente, não consegue esquecer do que aconteceu durante a infância. "É uma ferida aberta".

E porque não consegue se esquecer, resolveu começar a escrever o próprio livro em fevereiro desse ano.

Em 6 de abril, Dina foi a público contar, pela primeira vez, em um programa de televisão em Portugal, o que havia lhe acontecido. Dina é portuguesa. Aquela seria a primeira vez em que, finalmente, ela iria contar a todos a sua história. Mas pediram à Dina que mantivesse sua identidade em anonimato, o que não a agradou muito. Ela quer que saibam quem ela é.

Ela quer berrar bem alto que é uma vítima de estupro porque passou a vida tentando fazer com que alguém lhe escutasse, mas isso nunca aconteceu.

Quando ainda estava na adolescência, Dina chegou a enviar cartas para uma emissora de televisão do Brasil. Ela estava desesperada e queria denunciar os abusos. Queria alguma ajuda internacional que não encontrava em seu país. Mas, isso não aconteceu. Ela nunca obteve respostas.

Em abril, foi à TV porque ela mesma enviou um e-mail para a emissora portuguesa e se dispôs a contar a sua história de abuso. Foi aí que Dina entendeu a importância de tornar a sua vida pública. Agora ela está em fase de enviar o seu livro para as editoras. Ela espera que "Lágrimas no Silêncio" seja publicado.

Mas, antes de escrever esse livro, muitas coisas aconteceram.


Três décadas de silêncio

Dina Soares tinha 8 anos de idade quando foi estuprada pela primeira vez pelo próprio pai, na sala de casa. O homem que ela mais amava e confiava, quem ela achava que estava ali para lhe proteger de tudo, trancou todas as portas e janelas de casa para obrigar a própria filha a colocar a boca em seu pênis. Ele abaixou as calças, mostrou o órgão ereto e agarrou Dina à força. Com a pequena menina em prantos e aos gritos, ele acabou com a infância da filha dessa forma, enquanto a mãe dela estava no trabalho.

A menina não entendia o que estava acontecendo, ela não tinha a menor ideia do que aquilo significava. Quando finalmente conseguiu se livrar das garras de seu abusador naquele dia, Dina saiu correndo, calada, pelas ruas sem rumo, porém não sem antes receber o aviso de seu pai, que disse à ela que a esperava para fazer a mesma coisa no dia seguinte.

Enquanto a garota corria, encontrou um campo no qual havia um riacho com água corrente. Então, ela enfiou a cabeça dentro da água na tentativa de esquecer de tudo. Mas, ela teria que voltar para a casa. E teria que lidar com uma ferida aberta pelo resto da vida,

Dina preocupou-se em contar para a mãe o que havia acontecido naquele dia enquanto ela trabalhava, mas a mulher não acreditou no relato da criança. Ao invés de tentar proteger a filha dos abusos, a mãe disse à criança que aquilo tudo era normal, que acontecia em outras famílias e que ela não tinha tempo para “chorumelas”.

Quando a menina chorava e pedia ajuda da mãe, a mulher avisava que era melhor ela parar de “frescura” ou ia bater muito nela, pois estava cansada depois de trabalhar o dia todo. A mãe de Dina permitia que o estupro continuasse a acontecer dentro de casa. E continuou.

Até completar 14 anos de idade, a menina foi estuprada constantemente pelo pai. Ele chegava em casa e, assim que abria a porta, já ia tirando as calças para violentar a criança. Ele estuprava a menina com a esposa em casa, na hora do banho e em diversos outros momentos.

O pai de Dina era um homem sujo e a lembrança do odor daquela casa permanece viva na memória da mulher que hoje tem 45 anos.

Ele pedia à ela que se lavasse na mesma água que ele tomava banho e dizia à Dina que isso seria uma honra para ela, já que assim ela poderia “aproveitar a energia dele que entrava no corpo dela”. Quando Dina entrava na banheira, havia uma espuma cinzenta, com restos de sabonete. Na maioria das vezes, ele entrava na banheira junto com a filha e obrigava a menina segurar uma bacia, na qual ele urinava. É o cheiro dessa espuma fétida que causa náuseas e embarga a voz de Dina até hoje.

Violentada pelo pai e sem o auxílio da mãe, com 16 anos de idade Dina saiu de casa para se casar o pai de seu primeiro filho. Para ela, essa era a chance de livrar, finalmente, da tortura vivida na casa da família. Mas as lembranças, essas sempre vão acompanhá-la. Mais de 30 anos depois dos episódios de estupro, as memórias estão mais vivas do que nunca em Dina, que apresenta uma série de sequelas causadas pelo trauma na infância.

Desde que resolveu falar sobre o assunto, depois de décadas de silêncio, ela tem pesadelos com o pai. Nesses anos todos, já pensou em suicídio várias vezes, pensa até hoje e desenvolveu uma série de transtornos obsessivos compulsivos (TOC) porque se sente suja. Dina toma banhos longos diversas vezes por dia e sente a necessidade de lavar as mãos de cinco em cinco minutos. Ela não consegue ver uma cena de violência, mesmo que sejam cenas de ficção, sem ter uma crise nervosa.

E é por ter que carregar esse peso que Dina não se cala. Não mais.



terça-feira, 14 de junho de 2016

Nó na garganta

                                                                                                          Foto: cedida por J. A.


*J. A. pediu para que a sua identidade fosse preservada, pois alguns familiares ainda não sabem o que lhe aconteceu durante a infância. Ela se preocupa com a reação dessas pessoas.



I.

Hoje J. tem 29 anos, é fonoaudióloga e trabalha com aparelhos auditivos. O sonho dela é poder ajudar outras pessoas, já que ela própria não teve ajuda quando precisou.

J. tinha 4 anos quando ganhou um irmãozinho. Com a chegada do bebê, a família voltou toda a sua atenção somente para o caçula.

Os pais de J. tinham o hábito de sempre visitar a casa dos avós paternos, que era grande o suficiente para a menininha brincar livremente, sem supervisão alguma.

Nessa casa também morava o irmão mais novo do pai de J., que tinha cerca de 20 anos em 1991. Uma vez ele resolveu chamar a sobrinha de 4 anos para visitar o seu quarto. Ele tinha uma "brincadeira que ela ia gostar".

Esse quarto ficava no fundo de um corredor da grande casa e não tinha porta. No lugar, havia uma cortina de miçangas. Para tornar o local inacessível enquanto estava com a sobrinha, o homem arrastou uma cômoda grande no lugar da porta.

Nesse quarto haviam duas camas de solteiro. A cama dele era a da esquerda, encostada na parede, a qual ele usou para colocar a sobrinha no colo, virada com o rosto para ele, e começou a esfregar a pequena em suas partes.

Ele a esfregava com tanta força que aquilo machucava o corpo de J. Mas, ela nem tinha noção de que o tio estava fazendo isso para se masturbar. Ela nem sabia o que era isso.

Depois disso, a pequena chorava e falava para os pais que não queria ir mais na casa dos avós paternos. Mas, eles não davam ouvidos à J. e continuavam levando a criança até o local. Era só a casa dos avós, que mal poderia ter?

O tio de J. continuou abusando sexualmente da sobrinha de 4 anos por mais um ano, mesmo com ela pedindo para parar. Mesmo com a menina implorando. Mesmo com a criança chorando muito.

"Ele gostava daquilo mesmo quando eu pedia para parar", conta J., com um misto de nojo e medo.

25 anos depois, ela consegue se lembrar com nitidez de como o tio sentia prazer com o seu desespero. O que você se lembra de quando tinha 4 anos?


II.

Era uma brincadeira, ela ia gostar. Era isso que ele dizia.

Certa vez, o tio de J. chegou a convidar um amigo para ir até o quarto ver o que ele fazia com a sobrinha.

Até hoje J. se lembra do rosto desse amigo porque ele olhou para a criança, que estava chorando, e perguntou ao tio dela se aquilo não ia dar problema, se não tinha perigo de a pequena contar tudo.

O tio de J. disse que não, que tava tudo bem. Afinal, ela era "muito pequena". Ele sabia muito bem disso.


III.

Por causa dos abusos, a criança passou a ter medo de qualquer homem, inclusive do próprio pai, que se parecia muito, fisicamente, com o irmão mais novo.

Houve um tempo em que J. praticava karatê e o pai a levava, sozinho, até a cidade onde eram as aulas. Durante o caminho, ela lembra que sentia pavor. Era uma tortura para ela. J. não deixava o pai se aproximar, encostar ou abraçar ela. Até hoje não são muito próximos.


IV.

Outra coisa que aconteceu foi que J. aflorou sexualmente muito cedo. Com 5 ou 6 anos, se masturbava em qualquer lugar. Uma vez apanhou da mãe porque estava se masturbando no ônibus. Outra vez, porque estava enfiando colheres na calcinha. Ela se masturbava até quando a família estava toda na sala. J. passou a ter essa necessidade depois dos abusos.

Com apenas 9 anos, menstruou.

Ela demorou um tempão para entender que tinha sido vítima de abuso sexual.

E quem dera a história de abuso de J. acabasse por aqui.


V.

Quando ela tinha 12 anos, começou a fazer aulas de dança na escola. Aos 14, um dia estava saindo de uma dessas aulas quando encontrou um amigo da família, que a chamou para ir até a casa dele ver a mãe dele. Ela não viu problema algum nisso, afinal, eram pessoas que estavam sempre visitando a sua casa.

Mas, quando J. chegou até o local e chamou pela mulher, ela não obteve respostas. O "amigo" pediu, então, para que ela esperasse na sala.

Quando voltou ao local, esse homem a atacou. Ele a agrediu e tapou a boca de J. à força para conter os gritos.

Esse homem rasgou a meia calça e o collant da bailarina de 14 anos.

Depois de estuprá-la, jogou uma camiseta em cima do seu corpo, ordenou que ela se vestisse e a obrigou a lavar uma almofada do sofá que ficou suja de sangue.

Humilhada e dolorida, J. não tinha opções. Ela fez o que o agressor mandou.

E foi embora.

Em casa, ninguém soube. Ninguém nem desconfiou.


VI.

A menina até tentou desabafar com a mãe e falar sobre o assunto depois de ir em uma consulta no ginecologista dois anos mais tarde. Naquela consulta, a mãe de J. descobrira que ela não era mais virgem. Então, a adolescente tentou contar a mãe o que tinha acontecido. Mas, não houve diálogo. A mãe mudou de semblante quando a filha começou a contar, recomendou que ela esquecesse e nunca mais falou sobre o assunto.

J. fala com mágoa dos pais. Ela passou a vida tentando agradá-los, "mas parece que nada adianta". Os pais dela queriam que ela se casasse e tivesse filhos, mas os relacionamentos de J. nunca duraram o suficiente. Ela desenvolveu uma enorme dificuldade com relacionamentos e, além disso, não pode engravidar porque tem endometriose, uma doença que atingiu as trompas de seu útero.


VII.

Mas, o que mais atingiu a vida de J. foi o silêncio. Por isso hoje ela faz um escândalo.








sábado, 4 de junho de 2016

A história de uma menina de 6 anos que uma vez pediu um absorvente

                                                                                                                             Fotografia: Lucas Moreira



por Juliana Trevisan


Vamos falar sobre silêncio. Vamos falar sobre o que não é falado, que nunca foi citado, sobre o grito entalado e sobre palavras que não sabem como serem ditas. 
Mas, antes, vou contar a história de uma menina de 6 anos que um dia levantou no meio da aula e pediu para a professora um absorvente pois estava menstruada. A professora ficou chocada, não sabia reagir, era impossível uma menina de 6 anos estar menstruada. Meio desconcertada a professora levou a menina para sala da direção.
Quando perguntaram para a menina se ela sabia o que era menstruação, ela respondeu com toda naturalidade do mundo: "claro que sei, é quando sai sangue pela xoxotinha". 

Ao ouvir isso, metade dos funcionários que se encontravam na recepção da diretoria correram para suas salas para não caírem no riso na frente da menina, eles queriam evitar que ela ficasse constrangida. Uma das professoras foi com a menina no banheiro para ver se realmente havia sangue na calcinha, e de fato havia, mas não parecia nada preocupante. 

Ela conversou com a menina e explicou que ela não estava menstruada, que provavelmente ela deveria ter caído ou batido em algum lugar e se machucou. A menina não lembrava de ter se machucado, mas se adultos dizem que é verdade, verdade é. 

A direção do colégio só comentou esse episódio com a mãe 2 semanas depois. 


Essa menina estava pedindo socorro, mas o grito silencioso dela foi ignorado. O pedido de ajuda foi confundido com vontade de ser gente grande. Apostaram na inocência dela e esqueceram da maldade de quem vivia em volta.

Essa menina de 6 anos estava sendo abusada sexualmente pelo pai. 

Quero que você preste atenção na idade dela, SEIS ANOS, e quero que você resgate as suas lembranças nessa idade.

Feito isso, se coloque no lugar dessa criança. Se imagine com 6 anos sendo acariciada pelo papai antes de dormir. Dói, né? 


Mas não dói nem metade do que dói em mim, porque essa história é minha, e eis meu grito entalado. Talvez eu não vá falar sobre o silêncio, o que eu preciso agora é quebrar o silêncio.


Pedofilia existe e pedofilia é silenciosa. Ela acontece quando ninguém vê, ela age em cima do medo e acaba com a cabeça de um ser humano. 


Aprendi tudo errado, tesão é amor, medo é respeito. A negação foi minha maior aliada e a culpa minha guia. Dói, dói na alma, e eu sei que por mais que eu chore essa dor não vai passar. Eu vou me acostumar com ela, mas ela nunca vai passar. Uma vez que você perde o domínio do seu corpo, saber o seu espaço é muito difícil. 

As marcas do abuso são tão profundas que criam "traços de personalidade". Pessoas abusadas se reconhecem. Quem sabe o que isso causa enxerga rapidinho nos outros. 

Eu consigo, depois de uma certa convivência, identificar o abuso em outra pessoa, do mesmo jeito que já identificaram o abuso em mim varias vezes. Somos um clubinho secreto da dor. Somos aqueles que por muito tempo não gritaram. Somos fruto do nosso passado. Somos sobreviventes. 

Mas, eu não estou aqui para chorar as minhas dores.  

Eu quero alertar para algo que acontece e que é difícil de reconhecer. Se naquele dia, na escola, alguém tivesse falado para a minha mãe sobre o ocorrido, ela teria me levado no médico e isso poderia ter me salvado de mais 14 anos nas mãos do meu pai. 

Então, quando se trata de crianças, observe, vá além do lógico. 

Eu gritei por socorro a minha vida toda, mas todos achavam que eu só queria atenção. Eu tinha o que falar, só não sabia como. As crianças demonstram, às vezes de uma maneira não muito nítida, mas demonstram. 


Veja além do óbvio, interprete o que não foi falado.